dom, 20/11/2016 - 12:33
Atualizado em 20/11/2016 - 14:42
Jornal GGN - No artigo a
seguir, o promotor de São Paulo, Sotelo Felippe, avalia que vivemos um paradoxo
das experiências sociais e políticas no mundo, onde sabemos que o uso da razão
pode levar a emancipação da Humanidade. Porém as ideologias desenvolvidas ao
longo dos séculos, especialmente, desde o iluminismo em suas várias correntes
políticas, acabaram perdendo para outras propostas contra a socialização de
direitos, distanciando o caminho tomado para a emancipação intelectual e
social.
"Ou bem mergulhamos na barbárie ou bem a luta
social consegue resgatar o projeto iluminista que desde o século XVIII,
passando por Marx, que viu no socialismo a razão emancipadora da humanidade,
tem sido o motor da resistência à opressão", destaca Felippe, apontando
para a necessidade de se manter a resistência onde for possível, "em cada
escola, em cada bairro, em cada fábrica".
O padrão na história das ideias é localizar o
Iluminismo no século XVIII, na esteira das grandes descobertas científicas
anteriores – Copérnico, Galileu, Newton, etc. A razão mostrara então o
funcionamento real da natureza, superando o obscurantismo, superstições e
crenças religiosas arraigadas há séculos. Não haveria por que não esperar que a
razão bem sucedida para desvendar as leis da natureza não operasse na
experiência social e política.
Kant dizia que Rousseau era o Newton da moral e que
nada lhe causava mais admiração do que “o céu estrelado sobre mim e a lei moral
dentro de mim”. Newton permitira ver as leis que determinavam o movimento
harmonioso dos corpos celestes e Rousseau as leis morais que, não observadas
mas residentes na razão, poderiam emancipar a humanidade e reproduzir nas
sociedades a harmonia que se observava na natureza. Respondendo à pergunta “o
que é o Iluminismo? ”, Kant dizia que era a libertação da menoridade a que o
próprio homem se submetera. O homem seria livre quando submetido apenas à
própria razão, escapando de qualquer tutela; razão implicava liberdade.
Não obstante uma vulgarizada interpretação de Kant
o coloque como filósofo de um certo individualismo burguês, a moral kantiana
significava um sujeito que devia construir juízos morais-racionais
libertando-se da autoridade, da convencionalidade social, da religião. Um homem
racional não mata porque isto é uma regra dos 10 mandamentos ou porque a lei
impõe uma sanção. Ele não mata porque sua vontade livre não vê qualquer
racionalidade em uma sociedade de assassinos e o leva a considerar a dignidade
de cada ser humano.
O projeto iluminista, consistindo em emancipar a
humanidade pela razão, é muito mais do que o movimento intelectual e filosófico
localizado no século XVIII, de Voltaire, Rousseau, Diderot, Kant, Hume, etc.
Ele avança para o século XIX com Hegel e depois com Marx. Se para Kant ou Rousseau
a razão dispensava a História e era um processo estático do indivíduo
atomizado, para Hegel aparecia em movimento, ao longo do processo histórico,
inevitavelmente, regido pelas leis da dialética que desvendavam o movimento do
ser na direção do Espírito Absoluto (a razão plena e final). A consciência
humana superava contradições, teses e antíteses postas pela História e a
ideia a movia para forjar a matéria.
Marx é iluminista porque nele a razão igualmente
emancipa a humanidade, mas invertendo Hegel. Não era a ideia que respondia pela
matéria. Era a matéria que respondia pela ideia. A consciência estava
determinada pela necessidade, pelas condições materias da existência, pelas
forças produtivas, pelas relações entre produtor direto e proprietários. Em um
ou outro caso sempre a razão que ao fim e ao cabo triunfa e instaura o reino da
liberdade. Ao emancipar-se destruindo o capitalismo, pondo fim à opressão, à
miséria e à exploração do homem pelo homem, o proletariado, como sujeito da
História, emanciparia também toda a Humanidade.
II
Em Hegel o triunfo final da razão era inevitável.
Mas na inversão feita por Marx as coisas não correram assim. O proletariado foi
derrotado em 1848 e a tentativa de “tomar o céu de assalto” (na expressão de
Marx) feita pela Comuna de Paris, o primeiro governo proletário, durou pouco.
As grandes cisões doutrinárias do marxismo passaram
por essa questão ou giraram em torno dela: a inevitabilidade ou por qual modo o
proletariado se emanciparia, como se daria o advento do socialismo. Lênin
formulou uma resposta, muito bem-sucedida no primeiro momento porque conduziu à
tomada do poder pelos bolcheviques: espontaneamente o proletariado não
conseguiria escapar do economicismo e das lutas localizadas e não daria o salto
dialético da razão emancipadora, a revolução. Era preciso uma vanguarda,
disciplinada e coesa, que o conduzisse e lhe desse direção política, filosófica
e intelectual: o partido.
Em 1915 uma desolada e brilhante Rosa Luxemburgo
escreveu na cadeia um pequeno texto que tornou célebre a disjuntiva “socialismo
ou barbárie”. O sujeito dialético da História, o proletariado, que ao
emancipar-se emanciparia a humanidade, aderira, em vez disso, ao nacionalismo
burguês apoiando a mais insana das guerras e se trucidava reciprocamente no
campo de batalha. O Partido Social-Democrata alemão, o maior partido marxista
do mundo, liderança do movimento operário, votara no Parlamento a favor dos
créditos de guerra. Menos de um depois de iniciada a I Guerra, o entusiasmo das
massas já cedera diante da visão dantesca dos campos de batalha e dizia Rosa
Luxemburgo no artigo:
“Pisada, desonrada, patinando no sangue, coberta de
imundície: eis como se apresenta a sociedade burguesa, eis o que ela é. Não é
quando alimentada e decente, ela se traveste de cultura e filosofia, de moral e
ordem, de paz e de direito, mas quando ela se assemelha a uma besta selvagem,
quando ela dança o sabá da anarquia, quando ela sopra a peste sobre a
civilização e a humanidade que ela se mostra cruamente como é na realidade.
“E no âmago deste sabá de feiticeira produziu-se
uma catástrofe de alcance mundial: a capitulação da social-democracia
internacional. Seria para o proletariado o cúmulo da loucura alimentar ilusões
quanto a isto ou encobrir esta catástrofe: é o pior que pode lhe acontecer.
“Na guerra mundial atual o proletariado caiu mais
baixo que nunca. Isto é uma desgraça para toda a humanidade. Mas seria o fim do
socialismo apenas se o proletariado internacional se recusasse a avaliar a
profundidade de sua queda e a tirar os ensinamentos que ela traz”
O artigo, a rigor, alterna afirmações que ainda
trazem o traço da vitória final e necessária do proletariado e de como
alcançá-la, com outras que admitem que a barbárie é uma alternativa real ao
socialismo. Com a expressão “socialismo ou barbárie” Rosa Luxemburgo remete o
seu leitor a um texto de Engels, 40 anos antes, que afirmava que a sociedade
burguesa se via diante do dilema do avanço para o socialismo ou “recaída na
barbárie”. E pergunta ela: “mas o que significa recaída na barbárie no grau de
civilização que conhecemos hoje na Europa? ”:
“Nós estamos colocados hoje diante desta escolha:
ou bem o triunfo do imperialismo e a decadência de toda civilização tendo como
consequências, como na Roma antiga, o despovoamento, a desolação, a
degenerescência, um grande cemitério; ou bem vitória do socialismo, ou seja, da
luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo e contra o
seu método de ação: a guerra. Eis aí o dilema da história do mundo, sua
alternativa de ferro, sua balança no ponto de equilíbrio esperando a decisão do
proletariado consciente”.
III
O artigo de Rosa Luxemburgo completou 100 anos.
Decorrido esse tempo, a questão sobre ser possível a barbárie, sobre ser
possível a derrota do projeto iluminista da razão, sobre ser possível a
derrocada do processo civilizatório conduzindo a um mundo semelhante ao que se
seguiu à queda da Roma antiga, persiste. Então, uma ensandecida guerra entre
bandos imperialistas. Hoje, a hegemonia de uma lumpemburguesia ensandecida,
degenerada, selvagem.
Marx usou a expressão lúmpen (que significa mais ou
menos “trapo desprezível” em alemão) para designar a categoria de desenraizados
que foi a massa social de apoio de Luís Bonaparte (o sobrinho de Napoleão que
fez a história se repetir como farsa): libertinos decadentes, filhos arruinados
da burguesia, gatunos, trapaceiros, desqualificados, etc. Mas também utilizou a
expressão posteriormente para designar a aristocracia financeira parasita. O
lúmpen tanto podia ser burguês quanto a escória da parte inferior da pirâmide
social.
O economista marxista argentino Jorge Bernstein
identifica a classe dominante global hoje como lumpemburguesia porque se funda
no parasitismo financista. A financeirização do capitalismo é a base da
degeneração que vivemos e é uma ameaça de retrocesso civilizatório. Derivados
financeiros representam cerca de 20 vezes o Produto Bruto Global. Isto é,
prossegue, parte de um processo mais amplo de parasitismo do sistema
capitalista mundial, que também inclui “a hipertrofia militar, a
narco-economia, o consumo conspícuo das elites globais”.
Assim, conclui, o núcleo central dominante
transformou-se em casta parasita e “nesse sentido é possível estabelecer
paralelos com outros declínios civilizatórios, como por exemplo o do Império
Romano, a fase superior e final da chamada civilização greco-romana”.[i]
Na Argentina a lumpemburguesia representada por
Macri preda e destrói. Cada grupo dominante saqueia despreocupado com o futuro.
No Brasil o lumpesinato burguês de Temer em poucos e ensandecidos meses forja
uma brutal transferência de renda para o parasitismo financeiro, deslocando
recursos que são essenciais para uma população em grande parte miserável, com
precário acesso a bens sociais como saúde e educação.
Mas tal degeneração, local e global, não pode
prescindir de uma base social construída a partir de uma tremenda ofensiva
ideológica. Ela faz a consciência das massas olhar para o lado errado, tal qual
um prestidigitador que opera o truque com uma mão induzindo a plateia a olhar
para a outra mão.
O inimigo não é quem preda a riqueza mundial e
causa a sua insegurança social e econômica, mas, no ressentimento explorado por
essa ofensiva ideológica, o imigrante, o que está mais abaixo na escala social,
os negros beneficiados por políticas afirmativas. Xenofobia, individualismo,
racismo, crença irracional na meritocracia, ausência de qualquer traço de
solidariedade social elegeram Trump. Parece uma piada pronta da história que
Trump se pronuncie como tramp, vagabundo. A alternativa, Hillary Clinton,
admitia em correspondências privadas não ter qualquer escrúpulo em cometer
crimes contra a humanidade matando milhares de sírios ou palestinos
A encruzilhada de que falava Rosa Luxemburgo está,
pois, ainda tragicamente posta. Ou bem mergulhamos na barbárie ou bem a luta
social consegue resgatar o projeto iluminista que desde o século XVIII,
passando por Marx, que viu no socialismo a razão emancipadora da humanidade,
tem sido o motor da resistência à opressão, à miséria, à exploração do homem
pelo homem, à concentração e acumulação de bens por 1% da população, largando à
própria sorte 99%, grande parte mergulhada em indizível miséria e odiando-se
entre si.
Há um enorme potencial de resistência e ela é como
o caminho que, dizia o poeta, se faz ao caminhar. Mas a barbárie avança e ela
tarda. Resistir em cada escola, em cada universidade, em cada fábrica, em cada
bairro, construir laços de solidariedade social, resistir denunciando as farsas
ideológicas que conduzem explorados a odiar explorados.
É resistência ou barbárie.
Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela
Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de
Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB
Federal.
[i]
http://outraspalavras.net/destaques/como-nos-tempos-do-declinio-de-roma/
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