Fui votar logo cedo pois também sou fiscal da FEDERAÇÃO BRASIL DA ESPERANÇA e, como tal, fui assinar a zerézima, conferindo a lisura das urnas eletrônicas. No meu local de votação e fiscalização, tudo tranquilo e sem filas e sem fiscais do adversário. (Acho um bom indício)!
Quando fui apanhar minha companheira Eró para também votar, dei uma olhadinha no meu zap li um texto do Vladimir Safatle com o título muito sugestivo "QUE OS MORTOS TENHAM DIREITO DE VOTAR". Transcrevo e lembro dos meus mortos, que hoje não votaram, mas com certeza, votariam em Lula 13, se vivo estivessem. O meu voto são em suas memórias. (MIF)
Meus Familiares:
Roberto e minha cunhada Penha, que subiu também em junho de 2021
Meus amigos e companheiros de utopias:
Zenilda (Cazuza e Marcão)
E ainda os amigos e companheiros Reginalda e Marcos Afonso
Texto do Safatle:
Que
os mortos tenham direito de votar
Vladimir
Safatle
Essa é uma das mais belas passagens de Jacques
Lacan. Trata-se do momento em que ele descobriu haver algo pior que a morte.
Pior que a morte havia a morte da morte, havia o ato de matar a morte, ou seja,
impedir que a morte pudesse ocorrer, com seu luto, com seu acolhimento
simbólico, com seu dolo, com seu dever de memória. Nesse caso, era como se
sujeitos fossem mortos pela segunda vez. Não só a morte física mas uma ainda
pior, ainda mais brutal: a morte simbólica.
O
momento em que ele a percebe não poderia ser mais sintomático. A França era uma
potência colonial em guerra, corpos de argelinos que lutavam pela independência
apareciam no mar depois de serem torturados. Os corpos daqueles que não queriam
mais ser colonizados desapareciam sem que suas famílias pudessem enterrá-los.
Sua morte era roubada de suas famílias, pois “desaparecer” é não saber onde
alguém está, se está vivo ou morto, se um dia voltará ou se foi em definitivo.
Essas
técnicas usadas nas chamadas “guerras contrainsurrecionais” serão exportadas
anos mais tarde para a América Latina. Nos anos 1970 encontraremos, por
exemplo, o torturador francês Paul Aussaresses, o mesmo que organizava sessões
de tortura e assassinato em Argel, ensinando aos militares brasileiros como
matar a morte, como desaparecer corpos sem deixar traço. Na plateia estavam
esses que nos governam hoje. Ouviram atentamente, anotaram copiosamente as
“técnicas”, aplicaram-na nos que lutaram contra a tirania. E, mesmo depois de
derrotados, levaram a sociedade brasileira a se calar diante de seus crimes,
pois, afinal, haviam sido “anistiados”, o que em bom português significa: os
criminosos perdoaram a si mesmos. Não haveria julgamento, ou seja, eles
poderiam voltar a qualquer momento.
Então
eles voltaram, e voltaram no momento em que o mundo passava pela pior pandemia
mundial. Como alunos aplicados, lembraram-se do que aprenderam e aplicaram as
técnicas da guerra contrainsurrecional em toda a população brasileira. Técnicas
que ensinam que impedir o dolo, desumanizar os mortos e circular a indiferença
como afeto social central é a melhor coisa diante daquilo que pede a existência
do Estado, a saber, a guerra e a pandemia.
O
Brasil viu então o horror de um governo que lutava contra a vacinação de seu
próprio povo, que zombava de suas mortes, que sabotava as tentativas da
sociedade de se autodefender, que escondia números, que “desaparecia” corpos
enquanto fazia de tudo para preservar os rendimentos da elite rentista, do
sistema financeiro, dos empresários da corte. Um governo que matava a morte. O
resultado foi inapelável: mesmo levando em conta apenas os números incertos que
conseguimos levantar, descobrimos que tínhamos 3% da população mundial e 15%
das mortes por covid no mundo.
Há
pessoas que gostam de repetir que números não mentem. Bem, pessoalmente não
tenho um fetiche dessa monta pelas “verdades numéricas”. É possível fazer
números mentirem, mas há momentos, há de se reconhecer, em que os números são
brutalmente explícitos e não conhecem “interpretação” de nenhuma sorte. Não há
nada a dizer quando um país que tem 3% da população mundial é responsável por
15% das mortes por covid. Nada a dizer a não ser: quem nos governava à época
merecia ser afastado naquele momento, ser objeto de impeachment. Era
simplesmente parte do problema. E não foram poucos os que lutaram por isso.
No
entanto, eis que eles continuam e, anos depois, ameaçam ser reeleitos. Uma
reeleição que significaria jogar na vala comum todos os que morreram por
irresponsabilidade e indiferença do Estado, deixar seus corpos sem sepultura
apodrecendo a céu aberto. Corpos sem memória. Significaria o crime aterrador de
esquecer e perdoar quem os matou, não uma, mas duas vezes. Os gregos tem uma
bela tragédia, Antígona, a respeito do que deve (e esse “deve” está aí por
rigor) ocorrer quando uma sociedade vê como possível matar duas vezes alguém.
Ela deve desaparecer. Ela perdeu toda e qualquer substância ética, é só uma
associação de “assassinos sem maldade e vítimas sem ódio”, como dizia Günther
Anders.
Por
isso, amanhã não votarão apenas os vivos, votarão também os mortos. Ressurretos
por um momento, eles segurarão a mão da insanidade como quem diz: “Nós não
seremos mortos uma segunda vez.” E será essa ressureição dos mortos que salvará
o que sobrou de nossa sociedade brasileira, que nos permitirá começar a
construir outra sociedade a partir dos escombros dessa que já terminou. Nesses
paradoxos tão estranhos quanto belos, quando uma sociedade se encontra no seu
mais profundo perigo, são os mortos que nos salvam, é sua força de não se
deixarem esquecer que preserva a abertura de nosso futuro. Quando estivermos na
cabine de votação, não estaremos sozinhos. Haverá 700 mil pessoas votando
através de nosso gesto. Há momentos em que uma eleição é apenas uma eleição. E
há momentos em que uma eleição é o gesto derradeiro de uma sociedade que usará
da força de seus mortos para forçar as portas cerradas do futuro.