Um excelente balanço político do ano de 2023 pelo meu amigo pro. Dr. Homero de Oliveira Costa. Reproduzo. Esse dilema vai continuar em 2024. Torcendo para Lula, com seu tirocínio político, consiga minimizar os seus efeitos. (MIF).
Governo Lula (Ano I) e os dilemas do
presidencialismo de coalizão
31 de dezembro de 2023
O processo de
devastação causado pelo desmonte e a desestruturação do Estado e das políticas
públicas no país pelo governo Bolsonaro (e dos dois anos do desastroso governo
de Michel Temer) impôs enormes desafios ao governo Lula no seu primeiro ano de
mandato, do que tem sido chamado apropriadamente de reconstrução nacional.
O ministro das
Relações Institucionais, Alexandre Padilha, ao comentar sobre o primeiro ano do
governo Lula salientou as aprovações de importantes projetos do Executivo no
Congresso Nacional e afirmou que o presidente conseguiu - como parte de
iniciativas para reverter o conjunto de retrocessos institucionais, orçamentários
e normativos do governo anterior - atingir quatro principais objetivos:
equilíbrio econômico, reconfiguração de projetos sociais, (re) posicionar o
Brasil no mundo (política externa) e a manutenção da (até então) ameaçada
democracia.
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Um breve balanço do
primeiro ano de governo evidenciou as diferenças em relação ao anterior e para
melhor. Houve inegáveis avanços como o restabelecimento do clima democrático,
depois de uma tentativa frustrada de um golpe de Estado no dia 8 de janeiro
(antecedida por outras tentativas), o crescimento de 3% no PIB (maior do que
havia sido previsto), o retorno de investimentos em programas sociais, como
Bolsa Família, Farmácia Popular (que havia sido abandonado), reativação
ampliada do Programa Mais Médicos, a priorização da vacinação (desde 2016 havia
uma queda da cobertura vacinal ampliada no governo Bolsonaro assim como queda
de consultas, cirurgias e outros procedimentos realizados pelo Sistema Único de
Saúde).
Houve também, redução
do desmatamento na Amazônia (22%), na política externa (o país deixando de ser
o pária que foi durante o governo Bolsonaro), programas como Desenrola Brasil,
mais empregos (a taxa de desemprego do Brasil recuou a 7,7% no terceiro
trimestre de 2023. Foi o menor patamar para esse intervalo desde 2014),
salário-mínimo teve seu primeiro aumento real em anos. Houve também a aprovação
da reforma tributária, do arcabouço fiscal e tributação de fundos exclusivos e
no dia 27 de dezembro o Índice da Bolsa de Valores de São Paulo (Ibovespa)
superou os 134 mil pontos, pela primeira vez na história, acumulando uma
variação de quase 23% em um ano , além da queda da cotação do dólar.
Na cultura, pelos
dados disponíveis, segundo dados do Ministério da Cultura divulgados pelo colunista
Paulo Cappelli, do portal Metrópoles no dia 20 de dezembro de 2023,
o governo destinou para a Lei Rouanet mais recursos em 2023 do que nos quatro
anos do governo Bolsonaro. Foram disponibilizados R$ 16,3 bilhões para
projetos culturais, enquanto no governo anterior foram R$ 3,4 bilhões. Foram
aprovados 10,6 mil projetos contra 13,6 mil aprovados de 2019 a 2022. Um recorde histórico de recursos e projetos aprovados.
Enfim, com taxa de
desemprego em queda, crescimento da atividade econômica e inflação menor, o ano
de 2023 termina com um saldo positivo para o governo.
No entanto, para
aprovar projetos relevantes foi (e é) necessário contar com o apoio do
Congresso Nacional. Mas como o governo não tem maioria tem de ceder, fazer
concessões.
E a relação com o
Congresso Nacional parece ser o grande desafio do governo. Ao contrário dos
dois mandatos anteriores, Lula não tem maioria no Parlamento. Ainda tentou
construir após a vitória eleitoral e antes da posse, mas não conseguiu.
E o que se constatou,
especialmente no primeiro semestre, foram várias derrotas do governo no
Congresso Nacional. A primeira expressiva foi à votação do Marco Temporal,
parte da ofensiva da direita contra a agenda de proteção ambiental e dos povos
tradicionais. Foram 283 votos a favor e 155 contra.
Outra foi do Marco
Legal do Saneamento. Em uma votação na Câmara, 295 votaram a favor e 136
contra, e derrubaram trechos de dois decretos (um deles impedia a licença de
empresas públicas de saneamento para prestarem serviços a microrregiões ou
região metropolitana sem licitação).
Houve também, o que
não aconteceu nos dois governos anteriores de Lula, à criação, em
apenas cinco meses - de quatro CPIs; do MST, do 8 de janeiro (CPMI) – que o
governo inicialmente foi contra - das Americanas e das Apostas.
Além disso, o
Congresso adiou sistematicamente a votação do PL das Fake News.
E o processo
continuou. No dia 14 de dezembro de 2023 o Congresso derrubou o veto de
Lula à desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia. No Senado
foram 60 pela derrubada e apenas 13 contra, e na Câmara foram 378 votos a favor
e 78 contra.
Houve também a
retirada de todas as menções às restrições do Marco Temporal (vetado por Lula)
da demarcação de terras indígenas até a Constituição de 1988 (embora o
STF já tenha decidido que a tese do Marco Temporal é inconstitucional).
E finalmente a
votação no dia 20 de dezembro de 2023 para o orçamento do próximo ano, que
ampliou o poder do Parlamento e prevê despesas recorde com emendas parlamentares
e determinou que o governo terá que cumprir prazos no pagamento de emendas
impositivas (que são de pagamento obrigatório). Antes, não havia prazo.
Essa aprovação em
particular mostra como o governo deverá enfrentar dificuldades em obter
recursos públicos para investir na infraestrutura e na área social com os
cortes no orçamento, como os 6,3 bilhões em relação ao Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC), na educação (360 milhões), no Minha Casa Minha Vida (4
bilhões), Farmácia Popular (R$ 336,9 milhões), Fies (R$ 41 milhões menos do
previsto pelo governo) e o vale-gás com corte de R$ 44,3 milhões.
Além disso, não há
previsão de reajuste do salário do funcionalismo público.
O conjunto do que foi
aprovado obriga o governo a enxugar despesas
(a chamada austeridade fiscal) que limita os
gastos públicos para evitar déficit.
Ao mesmo tempo
o Congresso aprovou aumento para as emendas parlamentares, na qual o governo
havia propostos R$ 37,6 bilhões e foi aprovado R$ 53 bilhões, um aumento de 42%
em relação a 2022 (e deste total, 36 bilhões são para emendas impositivas). E
para o Fundo Eleitoral o governo propôs R$ 939,3 milhões e foram aprovados R$
4,9 bilhões.
Também foi aprovada a
criação de um calendário para liberar as emendas. O presidente terá até o dia
30 de junho de 2024 para distribuir verbas e não mais poderá liberar antes de
votações que considere importante, como ocorreu em 2023.
O fato é que o
Congresso impôs limites aos poderes do presidente da República, diminuindo o
seu poder de barganha. Se a Constituição de 1988 garante ao presidente um
grande poder de agenda (iniciativa legislativa preferencial, exclusividade de
iniciativa em matérias orçamentárias, legislar por decretos e medidas
provisórias etc.,) ter o apoio da maioria do parlamento é fundamental. Quem não
fez isso, como Bolsonaro no início do governo, teve consequências, como várias
derrotas em votações. Depois, aderiu ao Centrão que passou a ter o controle do
orçamento federal, com a criação das emendas do orçamento secreto e das emendas
de relator e na prática a terceirização da
administração pública.
E esse o grande risco
do que pode ocorrer também no governo Lula. Uma característica do
presidencialismo de coalizão é como diz o cientista político Sérgio Abranches
em artigo pioneiro sobre o tema (1988) é o fato de que os partidos dos
presidentes (eleitos) tem sido minoria no Congresso desde 1945 e dependem de
coalizões para garantir a governabilidade. E se é inegável que tem seus ganhos,
como a aprovação de projetos de seu interesse, também tem seu preço e no caso
do atual governo Lula com a nomeação de indicados da direita fisiológica para
altos cargos no aparelho de Estado.
E no Congresso
Nacional, majoritariamente de direita, quem mais se fortaleceu e desde o
governo Bolsonaro, foi o Centrão -– E isso se expressa nas votações e também
liberação de emendas parlamentares.
De acordo com o levantamento feito Luis Felipe Pereira e Marcos Mortari para
o InfoMoney, tendo como
base de dados o Portal da Transparência e publicado em 02/10/2023, até o dia 20
de setembro, a maior parte na distribuição de emendas parlamentares do ano
foram para os partidos que integram Centrão. E quem mais recebeu foi o PL - que
tem 99 deputados e 11 senadores - e obteve R$2,28 bilhões dos mais de R$ 23
bilhões empenhados. O PT, com 68 deputados federais, ficou em 4º
lugar, com R$ 1,71 bilhão, enquanto os partidos da base aliada, PSOL, PC do B,
PV, PDT e PSB, tiveram R$ 1,89 bilhão empenhado, um pouco mais do que o
Progressistas. (dados disponíveis em ). Acesso em 27 de dezembro de 2023.
E houve também
liberações vultosas que antecederam votações importantes no Congresso. Para
citar apenas uma: na votação da PEC da reforma tributária no dia 5 de junho de 2023,
um dia antes foram liberados R$ 5,25 bilhões, o maior repasse desde
a criação da chamada “emendas pix” em 2019 (uma modalidade de emenda de
transferência direta a estados e municípios) e representou 74,88% do total
destinado exclusivamente a esse tipo de emenda para 2023.
O resultado foi à
aprovação da PEC por 382 votos contra 118, com 20 votos a favor na votação de
primeiro turno e 18 no segundo do PL, que recebeu o maior valor em emendas:
quase R$ 700 milhões.
A ampliação dos
poderes do Legislativo levou alguns analistas a considerar se tratar na prática
de um semipresidencialismo ou de um semiparlamentarismo, como o sociólogo e
ex-deputado Liszt Vieira que considera que o aumento das verbas para as emendas
parlamentares “ocorre num contexto de semiparlamentarismo que pressiona o Poder
Executivo, minoritário no Parlamento, a fazer alianças e concessões que
fortalecem o Legislativo e enfraquecem o governo”.
As concessões são
inevitáveis e necessárias e explica a vitória do governo em muitas e
importantes votações. Mas, a que custo? Para garantir as condições de
governabilidade, se compondo com partidos fisiológicos, há o risco de ficar
refém do parlamento, como ocorreu com Michel Temer, que se livrou, por duas
vezes, da abertura de um processo de impeachment, assim como Bolsonaro, que
teve o apoio da maioria do Congresso Nacional, e especialmente na presidência
da Câmara dos Deputados com os mais de 100 pedidos de impeachment que sequer
foram analisados.
Este é um aspecto
relevante: para manter uma coalizão é preciso de articulação política, mas
também ceder, com cargos e liberação de emendas (não impositivas). O problema
central nesse sentido é o fisiologismo parlamentar em um momento no qual a
maioria fisiológica comanda o Legislativo e como afirmou Roberto Amaral
cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia, um governo que
necessita da partilha do poder, e coabita com o Centrão e a direita, se
fragiliza “em face de sua minoria em um Congresso reacionário e chantagista”
que “A cada necessidade do governo, nova paralisação da pauta, nova
chantagem, novo pagamento, mediante cargos ou verbas”.