O Rato Roeu o Queijo do Rei...
Rubem
Alves (1933-2014)
A
democracia, eu sempre a amei. Mas, de repente, relendo uma fábula antiga, tive
iluminação Zen: meu saber afetivo transformou-se em saber filosófico: sei agora
as razões por que amo a democracia. E acho importante que você leitor, saiba o
que fiquei sabendo para que, a despeito de tudo, você continue a amar a
democracia. Assim, passo a contar-lhe a mesma estória que eu contava à minha
neta no momento quando a iluminação aconteceu:
Havia,
outrora, num país distante, um rei que amava queijos acima de quaisquer outros
prazeres. O seu amor pelos queijos era tão grande que ele mandou vir, de todas
as partes do mundo, os mais renomados especialistas em queijo, aos quais foram
oferecidos recursos não só para continuar a fabricação de queijos já
conhecidos, como também para se dedicar à pesquisa de novos queijos, para assim
alargar as fronteiras da ciência, da técnica e da gula. Ficaram famosos os
queijos fabricados com leite de baleia e leite de unicórnio, estes últimos
procuradíssimos pelas suas virtudes afrodisíacas. O palácio do rei era um
enorme depósito de queijos de todas as qualidades, encontrando-se nele os
queijos camenbert, cheddar, edam,
emmenthal, gorgonzola, gouda, limburger, parmesão, pecorino, provolone,
sapsago, trapista, prato minas, mozarela, ricota, entre outros.
O
país tornou-se famoso e enriqueceu-se com a exportação de queijos. O seu cheiro
atravessava os mares. Universidades foram criadas com o objetivo de desenvolver
a ciência dos queijos. Houve mesmo uma escola teológica que concluiu que o
santo sacramento da eucarestia não foi primeiro celebrado com pão e vinho, mas
com queijo e vinho, donde se originou o costume que perdura até hoje nas
celebrações profanas.
Aconteceu,
entretanto, que além do rei e do povo havia outros seres no reino que também
gostavam de queijo: os ratos. Atraídos pelo cheiro que saía do palácio,
mudaram-se para lá aos milhares e passaram, imediatamente, a banquetear-se com
os queijos reais.
Os
ratos comiam e se multiplicavam. Tomaram todos os lugares: armários, gavetas,
canastras, camas, sofás, cozinha, cofres e até mesmo a barba do rei. O rei
passou a ser morada de ratos.
Mas o pior de tudo era que os ratos, premidos
por imperativos digestivos, tinham que expelir por uma extremidade o que haviam
engolido pela outra, e, a medida que andavam, espalhavam pelo palácio um rastro
de minúsculos cocozinhos, durinhos e malcheirosos.
Furioso,
o rei chamou os seus ministros e perguntou-lhes:
-
Que fazer para nos livrarmos dos ratos?
Eles
responderam:
-
É fácil Majestade. Basta trazer os gatos.
O
rei ficou felicíssimo com idéia tão
brilhante e mandou trazer uma centena de gatos para dar cabo dos ratos.
Os
ratos, ao verem os gatos, fugiram espavoridos. Foram-se os ratos . Ficaram os gatos
que encheram o palácio. À semelhança dos ratos, os gatos comiam tudo que viam
e, compelidos pelas mesmas exigências fisiológicas que moviam os roedores,
cobriram os brilhantes pisos do palácio com seus cocos fedorentos.
Furibundo,
o rei chamou seus ministros e perguntou-lhes:
-
Que fazer para nos livrarmos dos gatos?
E
eles responderam:
-
É fácil, majestade. Basta trazer os cachorros.
Vieram
os cachorros de todos os tipos, grandes e pequenos, curtos e compridos, lisos e
pintados.
Os
gatos, ao verem os cachorros, fugiram espavoridos. Foram-se os gatos. Ficaram
os cachorros, que encheram o palácio. E a mesma estória se repetiu. Ao final,
havia coco de cachorro por todos os lugares do palácio.
Apoplético,
o rei chamou os seus ministros e perguntou-lhes:
-
Que fazer para nos livrarmos dos cachorros?
E
eles responderam: - É fácil, Majestade. Basta trazer os leões.
Vieram
os leões com suas jubas e urros. Os cachorros, ao verem os leões, fugiram em
desabalada carreira. Foram-se os cachorros. Ficaram os leões. Mas os leões não
só comiam cem vezes mais, como defecavam cem vezes mais que os minúsculos
camundongos. O tesouro real entrou em crise. Baixaram as reservas de ouro. O
dinheiro não chegava para pagara carne que os leões comiam. E para pagar os
catadores de cocos, que ameaçavam entrar em greve.
Desesperado,
o rei chamou os seus ministros e perguntou-lhes:
-
Que fazer para nos livrarmos dos leões?
E
eles responderam: É fácil, Majestade. Basta trazer os elefantes.
Foram-se
os leões. Ficaram os elefantes. Enormes, eles comiam montanhas e defecavam
montanhas. O palácio transformou-se num enorme monte de bosta de elefante. E a
fedentina encheu o reino e atravessou os mares.
Em depressão profunda, o rei chamou seus
ministros e perguntou-lhes com voz sumida:
-
Que fazer para nos livrarmos dos elefantes?
Os
ministros lembraram-se, então, que os elefantes, que nada temem, estremecem-se
de medo ao verem um rato. E responderam em coro:
-
É fácil, Majestade. Basta trazer os ratos!
E
assim foi feito. Voltaram os ratos. Foram-se os elefantes. O rei e todos os que
moravam no palácio passaram sorridentemente a conviver com os ratos e os seus
cocos.
O
dia chegará quando minha neta terá crescido. Não mais lhe contarei estórias.
Ela aprenderá sobre a política. Quererá visitar o Congresso Nacional, símbolo
da democracia. Notará, espantada, que os prédios estão cheios de cocos de
ratos. Me dirá espantada: Vovô, deve
haver muitos ratos por aqui!
Eu
responderei: Sim, muitos ratos. E ele me perguntará: mas por que não trazem os gatos
para acabar com os ratos? Então eu lhe contarei de novo esta estória e lhe
direi: Aprenda a grande lição da democracia; é preferível coco de rato à bosta
de elefante.
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