Apenas uma mulher (1)
(Antes que eu volte a ser nada) (2)
Por:
Marcos Inácio Fernandes*
“A vida imita a arte muito mais do que a arte imita
a vida.”
Oscar Wilde
(1854 – 1900)
“A arte existe para que a realidade não nos
destrua.”
“Sem a música, a vida seria um erro.”
Friedrich Nietzsche (1844 - 1900)
A
arte da música é a que mais mexe com os sentimentos humanos. A combinação dessas
7 notinhas musicais, que produz sons, ritmos e vozes, que transcendem os
idiomas, linguagens e fronteiras são mágicas. É a arte que mais nos aproxima da
divindade.
Diz-se
também, que a música “transforma toda a dor em melodia”. É disso que vamos
tratar nesse texto, que pretende traçar um pequeno esboço, de como a mulher é
retratada na música popular brasileira.
A
música expressa, de forma poética e com rara beleza, todas as questões
políticas, sociais, raciais e de gênero, os preconceitos e os costumes que
predominam em determinadas épocas na sociedade.
As
mulheres, particularmente, são fontes de inspiração permanentes para os
compositores populares e também para os compositores de um verniz mais erudito.
Tem muitas “musas inspiradoras” na MPB, mas, por outro lado, é forçoso e
doloroso reconhecer que a violência contra a mulher brasileira, retratadas em
muitas músicas é uma trágica realidade, que a beleza das melodias, não
conseguem amenizar a crueza e a dureza dos versos que revelam essa violência.
A
segunda coisa que é bom esclarecer de início é que o mundo dos compositores é,
eminentemente, masculino. Até meados do século passado conhecemos apenas a
Chiquinha Gonzaga (1847 – 1935). Outras mulheres compositoras só iriam
despontar no pós guerra de 1945 e na contemporaneidade, em pleno século XXI, se
contam nos dedos as mulheres que são compositoras.
O
olhar masculino, com toda a carga que a cultura patriarcal e machista
introjetou na sociedade é que iria filtrar e reproduzir as relações de poder e
de gênero, que estão expressas nas composições, que passamos a elencar abaixo.
Nessa primeira listagem, apenas uma compositora está contemplada. Trata-se da
Leci Brandão (1944), que compôs um lindo samba, cuja letra, não foge a temática
de inferioridade e de subordinação da mulher. O título é revelador: “Antes Que Eu
Volte a Ser Nada”.
A mulher na música popular brasileira
MÚSICA
/ COMPOSITORES /ANO |
TEMA
RETRATADO |
1 – “Se
Essa Mulher Fosse Minha” (Autor desconhecido - Domínio Popular) |
Violência física
contra a mulher. |
2 - “Amor de
Malandro (Ismael Silva / Francisco Alves) – 1929 |
Violência física
contra a mulher. Introduz uma extravagante filosofia: “só se bate em quem se
quer bem” |
3 - “Dinheiro
Não Há” (Benedito Lacerda /Ernani Alvarenga) -1932 |
Violência física |
4 - “Marido da Orgia” (Ciro de
Souza) – 1937 |
Pequena reação aos
maltratos. A mulher consulta um advogado |
5 - “Oh Seu Oscar” (Wilson Batista e / Ataulfo Alves) –
1940 |
A mulher abandona o
lar porque queria viver na orgia (na versão do marido) |
6 - “Vou Contar Tntim Por Tintim”
(Cartola) – |
Violência física e
reação da mulher que diz que “vai ao Distrito” (Prestar queixa na polícia). |
7 - “Ai
Que Saudade da Amélia” (Ataulfo Alves /Mário Lago) -1942 |
Retrata a submissão e
resignação da mulher. “Amélia” passou a ser sinônimo de mulher submissa. |
8
- Onde
Está a Florisbela (Geraldo Pereira / Ary Monteiro) – 1944 |
Reação da mulher a
traição masculina. Abandona o lar e se vinga tocando fogo no violão e os
paletós do marido. |
10 - “Mulher de Malandro”
(Heitor dos Prazeres) -1950 |
Diz que a “mulher de
malandro quanto mais apanha mas a ele tem amizade” |
11 - “Mãe Solteira” (Wilson
Batista / Jorge de Castro) – 1954 |
Relata o suicídio da
porta-bandeira, Maria da Penha por conta do estigma social, que na época,
condenava a “mãe solteira” |
12 - A Mulher Que É Mulher
(Armando Cavalcante / Klécius Caldas) – 1954 |
Relata a submissão da
mulher ao homem, “faça ele o que quiser, não deixa o lar atoa”. “Se ele errar
perdoa” |
13
- “Mulher Que Não Dá Samba (Paulo
Vanzoline) – |
Mulher que dá samba é
a subalterna. Pode até dá bronca mas atrás dela “deve vir na roupa limpa e o
café quinte” |
14 – “Na
Subida Do Morro” (Moreira da Silva / Ribeiro Cunha) – 1959 |
Relata que “não se
pode bater numa mulher que não é sua”. Depreende-se que na sua pode. |
15
– “Notícia de Jornal” (Haroldo Barbosa
/ Luiz Reis)) -1961 |
Relata a tentativa de
suicídio de Joana por desilusão amorosa. Diz que “a dor da gente não sai no
jornal” |
16
– “Jornal
da Morte” (Miguel Gustavo) – 1961 |
Fala de suicídio de
mulher, drogas e assassinatos. |
17
- “Apaga o Fogo Mané (Adoniran
Barbosa) – |
A música relata que
“Inez foi comprar um pavio pro lampião” e não voltou. Não relata os motivos
porque ela fez isso. |
18
- “Nega Luzia” (Wilson Batista/Jorge
de Castro) - |
Retrata uma mulher
negra encrenqueira, que “queria botar fogo no morro.” |
19
- “Comprimido” (Paulinho da Viola) - |
Trata-se de uma mulher
ciumenta que apanhou por conta disso. O homem se suicida no final. |
20 - “Gol Anulado” (João Bosco / Aldir Blanc) - -1976 |
Violência física
contra a mulher |
21 - “Esse Cara” (Caetano Veloso) (1) - 1973 |
O lirismo da música de
Caetano não encobre a submissão absoluta da mulher pois ele “é o homem e u
sou apenas uma mulher”. Peguei emprestado para o título do artigo. (1) |
22
- “Com Açúcar, Com Afeto” (Chico
Buarque) -1967 |
Outra lírica que
romantiza a relação de submissão e tolerância da mulher. Elas se miram no
exemplo das mulheres de Atena (outra do Chico) e os companheiros nem precisam
ser guerreiros. |
23 - Conselhos de Vadio” (Candeia / Ernâni Alvarenga) -1975 |
Diálogo entre dois
amigos sobre uma mulher da boemia, que é tratada pejorativamente na música.
“Ela não quis ir para a cozinha e o amor morreu” |
24 - “Minha Namorada” (Carlos Lyra /Vinicius de Moraes) - 1965 |
O lirismo da Bossa
Nova não inovou quanto a submissão feminina. Exige da mulher fidelidade e
abdicação total ao companheiro, que traça “o
caminho a seguir” |
25 - Faz
Parte do Meu Show” (Cazuza / Renato Ladeira) - 1988 |
Para fazer “parte do
show masculino”, a mulher é “poupada” da verdade e tem seu sexo testado pelo
professor, o “macho alfa”. |
26 - “Faixa Amarela” (Zeca Pagodinho / Jessé Pai / Luiz Carlos) - 1997 |
O que pode ser um
presente para a ”linda donzela” pode se transformar numa agressão violenta se
a presenteada vacilar com dentes e costelas quebradas. |
27 - Ronda (Paulo Vanzoline) -1953 |
Mulher enciumada
promete se encontrar o parceiro “bebendo com outras mulheres, vai ter cena de
sangue no bar da Av. São João. |
28 - Antes Que Eu Volte a Ser Nada (Leci
Brandão) (2) – |
Uma linda melodia que
retrata a falta de amor próprio da mulher que se humilha para reatar um
relacionamento, mesmo que seja passageiro prá depois voltar “ a ser nada”. É
o subtítulo desse artigo. (2) |
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Excelente crônica, ilustrada, que aborda um dos temas mais fascinantes da nossa música: a importância da composição feminina dentro de um universo, predominantemente, masculino.
ResponderExcluirO fato da mulher compositora reproduzir, muitas vêzes, o velho padrão machista em sua própria composição, é das análises mais interessantes contidas no texto.
Parabéns ao amigo e autor Marcos Inácio Fernandes.
Excelente Marquito. Uma síntese bem ilustrada e abordada de forma didática.
ResponderExcluirParabéns pela pesquisa!