A Constituição no Pau
de Arara
Por: Marcos
Inácio Fernandes*
“A justiça
é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
(...)
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem amor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
(...)
Como é necessário o pão diário
É necessária a justiça diária.
(...)
O povo necessita de pão diário
Da justiça, bastante e saudável.
(...)
Sendo o pão da justiça tão importante
Quem, amigos, deve prepará-lo?
Quem prepara o outro pão?
Assim como o outro pão
Deve o pão da justiça
Ser preparado pelo povo.
Bastante, saudável, diário.
(Fragmentos
da poesia “O Pão do Povo” de Bertold Brecht)
No
Brasil, desde a Proclamação da República até o ano da graça de 2016, tivemos
espasmos de democracia. Nos 127 anos de República, apenas 57 anos de democracia.
Vamos conferir. Na República Velha que durou 41 anos, não se pode falar de
democracia. Tinha restrições ao voto, eleições fraudulentas, partidos únicos
estaduais hegemonizados por São Paulo e Minas, que se revezaram no poder, no que
se convencionou chamar de “República do Café com Leite”. Teve tantas
sublevações e extravagâncias na República Velha, que quero apenas ilustrar com
duas, a saber: O 2º Presidente da nossa história, o Marechal Floriano Peixoto,
nomeou 1 médico e 2 generais para compor o Supremo Tribunal Federal. O
Presidente Arthur Bernardes (1922-1926), governou todo o seu período em Estado
de Sítio.
Com
o advento da “Revolução de 30”,quando Vargas assume o poder, temos um espasmo
de democracia que dura apenas 6 anos. Em
1937, ele daria o golpe do Estado Novo, outorga uma Constituição com viés
fascista – A Polaca, implantando uma ditadura violenta até 1945.
A
redemocratização de 1946, com uma nova Constituição promulgada, pluralidade
partidária, Congresso funcionando, etc. mal chegou a adolescência. Foi morta
aos 18 anos, com o golpe político/militar de 1964, que jogaria o país numa
noite de terror por longos 21 anos.
Saímos dessa noite em 1985 e promulgamos a
Constituição, que Ulysses Guimarães, Presidente da Constituinte, chamou de
cidadã, em 1988. Ela ainda nem se tornou uma “mulher de 30”, uma balzaquiana madura,
e já estão querendo descartá-la da forma mais aviltante possível – sob tortura.
Ela
está sendo torturada, junto com outros presos, nos calabouços da Abu Grhaib de
Curitiba, pelo Sérgio Fleury da democracia, o juiz, pop star, Sérgio Moro. Na
sua Vara de 1ª Instância, a página da Constituição que trata no seu Título II
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, Capítulo I DOS DIREITO E DEVERES
INDIVIDUAIS E COLETIVOS e seu tão festejado Art. 5º do inciso I ao LXXVII, vem
sendo rasgada e triturada em pedacinhos de confeti. Tortura-se presos para que
façam delações. E presos de alto coturno, empresários e altos burocratas,
corruptos e corrompidos, que além dos crimes que lhe imputam (e acredito que
sejam muitos e verdadeiros), ainda os transformam em DELATORES, que se constituem
na escória da humanidade de todos os tempos.
Muitos
podem achar excessivo dizer que se tortura nos porões da Abu Grhaib de
Curitiba. Mas é disso que se trata. Ela não chega a indignidade da violência
física bárbara dos choques elétricos, unhas arrancadas com alicates,
queimaduras e até empalamento como fizeram com Mário Alves e outros comunistas.
Mas os comunistas são de outra têmpora. Eles sofriam todas as sevícias e morriam
sob tortura, mas não abriam um “ponto” não denunciavam um companheiro. Os grandes
burgueses do capital industrial brasileiro, os empresários, e seus “capitães do
mato”, os altos burocratas, não resistem a um banho frio, naquele clima de
Curitiba. Não resistem a uma privação mais prolongada de liberdade sem as
regalias a que estão acostumados. Ademais, com a chantagem e a tortura
psicológica de se prender seus familiares e de receber uma pena pesada e ser encarcerado
nesse sórdido sistema prisional brasileiro, eles denunciam até os apóstolos de
Cristo. Por outro lado, as delações são conduzidas, de tal forma, que só
atingem o PT, Lula, Dilma e outros membros do governo. Quando escapa alguma
coisa do outro espectro político, “não vem ao caso”, não se investiga e não se
vaza.
A
mais recente sessão de tortura na Constituição foi o choque elétrico que
recebeu nas suas entranhas com o grampo da própria Presidenta da República e
Ministros com prerrogativa de fórum e sua publicização com as versões mais
extravagantes da sua fala. Nesse fim de semana, o Ministro Gilmar Mendes,
aumentou a voltagem do choque, quando aceita, em caráter liminar, a ação do PPS
e PSDB, para tornar sem efeito a posse de Lula no Ministério, devolvendo o
processo à Vara do Moro. Nem uma palavrinha sobre o crime do grampo, quebra do
ordenamento constitucional, implantação de um Estado judicialesco/policialesco,
como ele considerou quando foi “grampeado” (ainda não apareceu o áudio) falando
umas abobrinhas, com o Senador Demóstenes Torres, que foi depois cassado.
Naquela
ocasião Gilmar chamou o Presidente Lula as falas todo indignado. Lula tomou
providências e mandou apurar. Viu-se depois que foi um farsa, mas sobrou para o
pobre do Paulo Lacerda, que comandava a PF na época, que caiu “prá cima” e foi
transferido para uma sinecura em Portugal.
Eu
me pergunto: o que faz um juiz e um Ministro, operadores do direito,
conhecedores da lei, agirem dessa forma? Será que eles se consideram acima da
lei para estarem fazendo o que estão fazendo? O Gilmar virou um Ministro
histriônico, um Ministro folclórico, que ainda não se deu conta que está caindo
no ridículo. Já está passando da hora de alguém pedir seu impedimento para ele
não contaminar o Supremo e a Magistratura brasileira, como o jurista Dalmo Dalari
e o ex-Ministro Joaquim Barbosa já haviam alertado.
Eu
fico espantadíssimo com versão que a imprensa passa para o público de que Lula
quer se refugiar no Supremo com a prerrogativa de fórum, que eles insistem em
chamar de “fórum privilegiado”. Que privilégio é esse de ser julgado numa
última instância sem ter mais a quem recorrer (a não ser a Deus, colega dos
semideuses do Supremo)? Argumentam que Lula e Dilma nomearam a maioria dos
Ministros e, portanto, estaria “tudo dominado”. Essa tese, além de desmerecer a
Corte está desmentida pelo recente processo do Mensalão, a AP 470. Quem não se
lembra, que os membros do PT, seus ex-presidente José Dirceu, José Genoíno e
outros membros do partido, foram julgados, condenados pesadamente e presos.
Nesse julgamento, o Supremo não reconheceu a dupla jurisdição a que muitos réus
tinham direito; criou uma jurisprudência nova do “domínio do fato” e, cúmulo da
aberração jurídica, condenou Dirceu sem provas, como admitiu a Ministra Rosa
Weber, que nesse julgamento tinha a assessoria do Juiz Sérgio Moro. Para dizer
o mínimo, “foi um ponto fora da curva,” como polidamente reconheceu o atual
Ministro Roberto Barroso, quando foi sabatinado pelo Senado para ocupar uma das
cadeiras do STF.
E
o Supremo tem muitos “pontos fora da curva” ao longo de sua história, que foram
caros à democracia e aos movimentos libertários e humanistas.
O
mais infame deles foi chancelar a expulsão e entrega de Olga Benário Prestes a
Gestapo nazista em 1936. Olga era a companheira de Luís Carlos Prestes e estava
grávida de uma menina (Anita Leocádia Prestes). Foram ambos presos em face do
levante comunista, fracassado, que foi chamado de Intentona Comunista ocorrido
em 1935. Olga foi expulsa, mas preferia ser julgada e presa no Brasil, pois
levava no seu ventre uma criança brasileira. O advogado Hermes Lima entrou com
um habeas corpus no Supremo que entre outros argumentos, alegava: “Se a lei considera na gestante duas pessoas distintas, a mãe e o
nascituro; se a Constituição estatui que nenhuma pena passará da pessoa o
delinqüente […] – se a expulsão é uma pena; se tal pena alcançará em seus
efeitos o filho da expulsanda, embora ainda não nascido: segue-se que o
decreto de expulsão, além de ferir o preceito constitucional protetor da
maternidade, ofende ainda o principio da personalidade da pena. […]
Maria Prestes sustenta que o seu filho é brasileiro, foi concebido no Brasil,
quer nascer e viver no Brasil. Como brasileiro, tem o direito de não ser
expulso do Brasil“. (LIMA, Heitor. Petição inicial do HC 26.155/DF, STF, 1936).
O STF não foi sensível a esse e a outros argumentos e se consumou a
expulsão e entrega aos nazistas de Olga Benário Prestes. “Ela foi assassinada no Centro de Eutanásia de Bernnurg, onde
morreu numa câmara de gás em 23
de abril de 1942. A condenação de Olga à
morte fora decretada em 1936, quando o STF não conheceu o HC 26.155, relatado por Bento de Faria. Desta
história de lutas, dramas e violações, restou sua filha Anita Leocádia Benário
Prestes” (“A História do Direito entre Foices,
Martelos e Togas” (2008), de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Ver também “Olga”,
de Fernando Morais, que se transformou em filme, com o mesmo nome).
Sobre esse episódio, o
poeta Aprígio doa Anjos, irmão do outro grande poeta paraibano Augusto dos
Anjos fez esse soneto:
"Neste
foro de gênios insepultos,
Cheio
de múmias e quadrupedantes,
Vejo
pingüins passarem por gigantes
E
analfabetos por jurisconsultos.
Acórdãos
de sentidos claudicantes,
Na
feitura de juízes semicultos
Criam formas
bizarras e tumultos,
Que
escapa à perícia de Cervantes.
A
balança da lei não tem mais pratos,
Desde
de que sucumbiu Poncius Pilatos,
Desgraçou-se
a justiça de uma vez.
Ele ao
menos conforme a bíblia ensina
Lavava
as mãos escuras com benzina,
Coisa
que Hermenegildo nunca fez! "
Hermenegildo Rodrigues
de Barros, ocupou o STF de 1919 a 1937. Foi um dos votos a favor da extradição de Olga
Benário Prestes, quando o STF era presidido pelo Ministro Edmundo Lins.
O
segundo episódio lastimável foi a cassação do registro do Partido Comunista do
Brasil – PCB em 1948. O argumento era de que o partido seria uma
organização internacional comandada por Moscou e que insuflava a desordem no
País. “Em 7 de outubro de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral, sob a
presidência do ministro Antonio Carlos Lafayette de Andrada, cassou
definitivamente o registro do PCB novamente pelo quórum de três a dois, com os
votos vencidos dos ministros Ribeiro da Costa e Sá Filho, que longamente
justificaram sua posição. Votaram pela cassação os ministros José Antônio
Nogueira (relator), Francisco de Paula Rocha Lagôa e Candido Lôbo.” (Kaufmann, Rodrigo de Oliveira. Memória
jurisprudencial : Ministro Ribeiro da Costa - Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2012. )
O voto do Ministro Álvaro Ribeiro da Costa, foi
brilhante, embora não tenha convencido a maioria de seus colegas. Eis um
pequeno trecho: “Constitui erro, senão estultice, supor que os juízes decidem jogando
com raciocínios glaciais; assim o sustentar, numa questão desse vulto, a
irrelevância do problema político, que lhe é intrínseco, devendo apenas ater-se
à aplicação pura e simples do preceito constitucional aos motivos alegados na
denúncia” (KAUFMANN, 2012)
Diria ainda Kaumann: “o Ministro Ribeiro Costa demonstrou
maturidade no trato da noção de democracia em período de curta estabilidade
constitucional. Sua ideia de democracia é moderna até para os padrões discursivos
de hoje, especialmente quando realça a responsabilidade dos homens públicos e
condena o exercício de arbitrariedade judicialista que facilmente hoje
receberia o nome pomposo e pseudolegitimador de ativismo judicial”.
Infelizmente, os juízes Sérgio Moro e Gilmar
Mendes, com seu ativismo judicial, não se espelham no seu colega Ribeiro Costa.
O desfecho do processo é o descrito por KAUFMANN,
2012: ´Em sessão plenária realizada em 28 de maio de 1947, no julgamento do HC
29.763 , o Supremo Tribunal Federal viria a confirmar a decisão do Tribunal Superior
Eleitoral que rejeitou o habeas corpus dos dirigentes do PCB. O ministro
Ribeiro da Costa, assim como o ministro Lafayette de Andrada, declarou-se
impedido, por ter atuado como juiz do Tribunal Superior Eleitoral, proferindo,
inclusive, voto contrário ao cancelamento do registro do Partido Comunista. Em
14 de abril de 1948, o Supremo Tribunal Federal ainda julgou o RE 12.369, com a
relatoria do ministro Laudo de Camargo, interposto contra a decisão do Tribunal
Superior Eleitoral, entendendo pelo não conhecimento do recurso, por unanimidade
dos ministros votantes.”
Estava consumada a cassação do PCB e dos seus
parlamentares no Congresso.
O 3º julgamento que o Supremo tergiversou com a
democracia foi quando julgou, recentemente, a ação ajuizada pelo Conselho
Federal da OAB em face do STF, a ADPF
153. Estava em pauta decidir pela constitucionalidade da lei brasileira de
anistia, que se aplicou tanto às vitimas do regime ditatorial militar quanto
aos seus algozes. O STF produziu uma decisão injusta - ainda que legal – quando
anistiou, de forma definitiva, os torturadores. O Brasil é o único país das
ditaduras do cone sul dos anos 70 (Argentina, Chile e Uruguai), que deixou
impunes seus torturadores. Aqui eles envelhecem e morrem tranquilamente de
morte natural. Um escárnio!
Esses exemplos históricos ilustrativos são apenas
para dizer, que os comunistas, socialistas e demais democratas, não tem muito o
que comemorar com as decisões do Supremo. Os democratas estão reticentes e
apreensivos com esse silêncio do STF. Essa omissão, estimulou as ações
agressivas aos direitos constitucionais que o juiz Sérgio Moro vem praticando.
Ademais, a Corte vive sendo achincalhada pelas atitudes desrespeitosas do
Ministro Gilmar Mendes e não as repelem. Pelo contrário, contemporizam com
elas. Ouve-se apenas a voz discordante do Ministro Marco Aurélio. Resta
perguntar: Ele está clamando no deserto? Quantos Ministros garantistas ainda
resta no Supremo? A sua maioria vai deixar estuprar a Constituição? A conferir.
Digo por fim que, se o Supremo nos faltar,
endossando as ações de Moro e do Gilmar, está caracterizado o golpe branco
travestido de legalidade. Entraremos novamente num Estado de Exceção sem
garantias individuais e coletivas. Só nos restará resistir ao golpe nas ruas e,
quando for instaurado o novo AI-5, cair na clandestinidade e/ou se auto-exilar
em algum país.
Na nossa manifestação contra o golpe e pela
democracia, que fizemos na última 6ª feira (18-03), aqui em Rio Branco,
reencontramos muitos e velhos companheiros de lutas. O assunto que permeava as nossas
conversas era sobre a nossa surpresa e perplexidade de voltarmos as praças para
defender a democracia. Pensávamos que já havíamos superado essa fase. Estávamos
enganados.
Tenho esperanças, a exemplo do moleiro de Sans
Souci em Potsdam, no episódio que relata a disputa do Rei Frederico II da
Prússia, que queria se apossar das terras do moleiro para fazer um “puxadinho”
no seu castelo e encontra forte resistência por parte deste. Tal disputa expressa
o sentimento de justiça que ainda acalenta a nossa luta. Eis o desfecho dessa
história: “Inconformado, disse o rei ao moleiro: ─ Você bem
sabe que, mesmo que não me venda a terra, eu, como rei, poderia tomá-la sem
nada lhe pagar. Mas o moleiro retrucou com a célebre frase: O senhor! Tomar-me
o moinho? Só se não houvesse juízes em Berlim. E o rei não fez o se “puxadinho”.
Também espero que ainda haja JUÍZES em Brasília!
Marcos Inácio Fernandes é professor aposentado e
militante do PT.