segunda-feira, 21 de março de 2016

A CONSTITUIÇÃO NO PAU DE ARARA






A Constituição no Pau de Arara

Por: Marcos Inácio Fernandes*

“A justiça é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
(...)
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem amor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
(...)
Como é necessário o pão diário
É necessária a justiça diária.
(...)
O povo necessita de pão diário
Da justiça, bastante e saudável.
(...)
                                Sendo o pão da justiça tão importante
                                Quem, amigos, deve prepará-lo?
                                Quem prepara o outro pão?

                                Assim como o outro pão
                                Deve o pão da justiça
                                Ser preparado pelo povo.
                                Bastante, saudável, diário.

          (Fragmentos da poesia “O Pão do Povo” de Bertold Brecht)

No Brasil, desde a Proclamação da República até o ano da graça de 2016, tivemos espasmos de democracia. Nos 127 anos de República, apenas 57 anos de democracia. Vamos conferir. Na República Velha que durou 41 anos, não se pode falar de democracia. Tinha restrições ao voto, eleições fraudulentas, partidos únicos estaduais hegemonizados por São Paulo e Minas, que se revezaram no poder, no que se convencionou chamar de “República do Café com Leite”. Teve tantas sublevações e extravagâncias na República Velha, que quero apenas ilustrar com duas, a saber: O 2º Presidente da nossa história, o Marechal Floriano Peixoto, nomeou 1 médico e 2 generais para compor o Supremo Tribunal Federal. O Presidente Arthur Bernardes (1922-1926), governou todo o seu período em Estado de Sítio.

Com o advento da “Revolução de 30”,quando Vargas assume o poder, temos um espasmo de democracia que dura apenas 6 anos.  Em 1937, ele daria o golpe do Estado Novo, outorga uma Constituição com viés fascista – A Polaca, implantando uma ditadura violenta até 1945.

A redemocratização de 1946, com uma nova Constituição promulgada, pluralidade partidária, Congresso funcionando, etc. mal chegou a adolescência. Foi morta aos 18 anos, com o golpe político/militar de 1964, que jogaria o país numa noite de terror por longos 21 anos.

 Saímos dessa noite em 1985 e promulgamos a Constituição, que Ulysses Guimarães, Presidente da Constituinte, chamou de cidadã, em 1988. Ela ainda nem se tornou uma “mulher de 30”, uma balzaquiana madura, e já estão querendo descartá-la da forma mais aviltante possível – sob tortura.

Ela está sendo torturada, junto com outros presos, nos calabouços da Abu Grhaib de Curitiba, pelo Sérgio Fleury da democracia, o juiz, pop star, Sérgio Moro. Na sua Vara de 1ª Instância, a página da Constituição que trata no seu Título II DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, Capítulo I DOS DIREITO E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS e seu tão festejado Art. 5º do inciso I ao LXXVII, vem sendo rasgada e triturada em pedacinhos de confeti. Tortura-se presos para que façam delações. E presos de alto coturno, empresários e altos burocratas, corruptos e corrompidos, que além dos crimes que lhe imputam (e acredito que sejam muitos e verdadeiros), ainda os transformam em DELATORES, que se constituem na escória da humanidade de todos os tempos.

Muitos podem achar excessivo dizer que se tortura nos porões da Abu Grhaib de Curitiba. Mas é disso que se trata. Ela não chega a indignidade da violência física bárbara dos choques elétricos, unhas arrancadas com alicates, queimaduras e até empalamento como fizeram com Mário Alves e outros comunistas. Mas os comunistas são de outra têmpora. Eles sofriam todas as sevícias e morriam sob tortura, mas não abriam um “ponto” não denunciavam um companheiro. Os grandes burgueses do capital industrial brasileiro, os empresários, e seus “capitães do mato”, os altos burocratas, não resistem a um banho frio, naquele clima de Curitiba. Não resistem a uma privação mais prolongada de liberdade sem as regalias a que estão acostumados. Ademais, com a chantagem e a tortura psicológica de se prender seus familiares e de receber uma pena pesada e ser encarcerado nesse sórdido sistema prisional brasileiro, eles denunciam até os apóstolos de Cristo. Por outro lado, as delações são conduzidas, de tal forma, que só atingem o PT, Lula, Dilma e outros membros do governo. Quando escapa alguma coisa do outro espectro político, “não vem ao caso”, não se investiga e não se vaza.

A mais recente sessão de tortura na Constituição foi o choque elétrico que recebeu nas suas entranhas com o grampo da própria Presidenta da República e Ministros com prerrogativa de fórum e sua publicização com as versões mais extravagantes da sua fala. Nesse fim de semana, o Ministro Gilmar Mendes, aumentou a voltagem do choque, quando aceita, em caráter liminar, a ação do PPS e PSDB, para tornar sem efeito a posse de Lula no Ministério, devolvendo o processo à Vara do Moro. Nem uma palavrinha sobre o crime do grampo, quebra do ordenamento constitucional, implantação de um Estado judicialesco/policialesco, como ele considerou quando foi “grampeado” (ainda não apareceu o áudio) falando umas abobrinhas, com o Senador Demóstenes Torres, que foi depois cassado.

Naquela ocasião Gilmar chamou o Presidente Lula as falas todo indignado. Lula tomou providências e mandou apurar. Viu-se depois que foi um farsa, mas sobrou para o pobre do Paulo Lacerda, que comandava a PF na época, que caiu “prá cima” e foi transferido para uma sinecura em Portugal.

Eu me pergunto: o que faz um juiz e um Ministro, operadores do direito, conhecedores da lei, agirem dessa forma? Será que eles se consideram acima da lei para estarem fazendo o que estão fazendo? O Gilmar virou um Ministro histriônico, um Ministro folclórico, que ainda não se deu conta que está caindo no ridículo. Já está passando da hora de alguém pedir seu impedimento para ele não contaminar o Supremo e a Magistratura brasileira, como o jurista Dalmo Dalari e o ex-Ministro Joaquim Barbosa já haviam alertado. 

Eu fico espantadíssimo com versão que a imprensa passa para o público de que Lula quer se refugiar no Supremo com a prerrogativa de fórum, que eles insistem em chamar de “fórum privilegiado”. Que privilégio é esse de ser julgado numa última instância sem ter mais a quem recorrer (a não ser a Deus, colega dos semideuses do Supremo)? Argumentam que Lula e Dilma nomearam a maioria dos Ministros e, portanto, estaria “tudo dominado”. Essa tese, além de desmerecer a Corte está desmentida pelo recente processo do Mensalão, a AP 470. Quem não se lembra, que os membros do PT, seus ex-presidente José Dirceu, José Genoíno e outros membros do partido, foram julgados, condenados pesadamente e presos. Nesse julgamento, o Supremo não reconheceu a dupla jurisdição a que muitos réus tinham direito; criou uma jurisprudência nova do “domínio do fato” e, cúmulo da aberração jurídica, condenou Dirceu sem provas, como admitiu a Ministra Rosa Weber, que nesse julgamento tinha a assessoria do Juiz Sérgio Moro. Para dizer o mínimo, “foi um ponto fora da curva,” como polidamente reconheceu o atual Ministro Roberto Barroso, quando foi sabatinado pelo Senado para ocupar uma das cadeiras do STF.

E o Supremo tem muitos “pontos fora da curva” ao longo de sua história, que foram caros à democracia e aos movimentos libertários e humanistas.
O mais infame deles foi chancelar a expulsão e entrega de Olga Benário Prestes a Gestapo nazista em 1936. Olga era a companheira de Luís Carlos Prestes e estava grávida de uma menina (Anita Leocádia Prestes). Foram ambos presos em face do levante comunista, fracassado, que foi chamado de Intentona Comunista ocorrido em 1935. Olga foi expulsa, mas preferia ser julgada e presa no Brasil, pois levava no seu ventre uma criança brasileira. O advogado Hermes Lima entrou com um habeas corpus no Supremo que entre outros argumentos, alegava: “Se a lei considera na gestante duas pessoas distintas, a mãe e o nascituro; se a Constituição estatui que nenhuma pena passará da pessoa o delinqüente […] – se a expulsão é uma pena; se tal pena alcançará em seus efeitos o filho da expulsanda, embora ainda não nascido: segue-se que o decreto de expulsão, além de ferir o preceito constitucional protetor da maternidade, ofende ainda o principio da personalidade da pena. […] Maria Prestes sustenta que o seu filho é brasileiro, foi concebido no Brasil, quer nascer e viver no Brasil. Como brasileiro, tem o direito de não ser expulso do Brasil“. (LIMA, Heitor. Petição inicial do HC 26.155/DF, STF, 1936).

O STF não foi sensível a esse e a outros argumentos e se consumou a expulsão e entrega aos nazistas de Olga Benário Prestes. “Ela foi  assassinada no  Centro de Eutanásia de Bernnurg, onde morreu numa câmara de gás em 23 de abril de 1942. A condenação de Olga à morte fora decretada em 1936, quando o STF não conheceu o HC 26.155, relatado por Bento de Faria. Desta história de lutas, dramas e violações, restou sua filha Anita Leocádia Benário Prestes” (A História do Direito entre Foices, Martelos e Togas” (2008), de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Ver também “Olga”, de Fernando Morais, que se transformou em filme, com o mesmo nome).

Sobre esse episódio, o poeta Aprígio doa Anjos, irmão do outro grande poeta paraibano Augusto dos Anjos fez esse soneto:

"Neste foro de gênios insepultos,
Cheio de múmias e quadrupedantes,
Vejo pingüins passarem por gigantes
E analfabetos por jurisconsultos.

Acórdãos de sentidos claudicantes,
Na feitura de juízes semicultos
Criam formas bizarras e tumultos,
Que escapa à perícia de Cervantes.

A balança da lei não tem mais pratos,
Desde de que sucumbiu Poncius Pilatos,
Desgraçou-se a justiça de uma vez.

Ele ao menos conforme a bíblia ensina
Lavava as mãos escuras com benzina,
Coisa que Hermenegildo nunca fez! "

Hermenegildo Rodrigues de Barros, ocupou o STF de 1919 a 1937. Foi um dos votos a favor da extradição de Olga Benário Prestes, quando o STF era presidido pelo Ministro Edmundo Lins.

O segundo episódio lastimável foi a cassação do registro do Partido Comunista do Brasil – PCB em 1948. O argumento era de que o partido seria uma organização internacional comandada por Moscou e que insuflava a desordem no País. “Em 7 de outubro de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral, sob a presidência do ministro Antonio Carlos Lafayette de Andrada, cassou definitivamente o registro do PCB novamente pelo quórum de três a dois, com os votos vencidos dos ministros Ribeiro da Costa e Sá Filho, que longamente justificaram sua posição. Votaram pela cassação os ministros José Antônio Nogueira (relator), Francisco de Paula Rocha Lagôa e Candido Lôbo.” (Kaufmann, Rodrigo de Oliveira. Memória jurisprudencial : Ministro Ribeiro da Costa  - Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2012. )
O voto do Ministro Álvaro Ribeiro da Costa, foi brilhante, embora não tenha convencido a maioria de seus colegas. Eis um pequeno trecho: “Constitui erro, senão estultice, supor que os juízes decidem jogando com raciocínios glaciais; assim o sustentar, numa questão desse vulto, a irrelevância do problema político, que lhe é intrínseco, devendo apenas ater-se à aplicação pura e simples do preceito constitucional aos motivos alegados na denúncia” (KAUFMANN, 2012)
Diria ainda Kaumann: “o Ministro Ribeiro Costa demonstrou maturidade no trato da noção de democracia em período de curta estabilidade constitucional. Sua ideia de democracia é moderna até para os padrões discursivos de hoje, especialmente quando realça a responsabilidade dos homens públicos e condena o exercício de arbitrariedade judicialista que facilmente hoje receberia o nome pomposo e pseudolegitimador  de ativismo judicial”.

Infelizmente, os juízes Sérgio Moro e Gilmar Mendes, com seu ativismo judicial, não se espelham no seu colega Ribeiro Costa.

O desfecho do processo é o descrito por KAUFMANN, 2012: ´Em sessão plenária realizada em 28 de maio de 1947, no julgamento do HC 29.763 , o Supremo Tribunal Federal viria a confirmar a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que rejeitou o habeas corpus dos dirigentes do PCB. O ministro Ribeiro da Costa, assim como o ministro Lafayette de Andrada, declarou-se impedido, por ter atuado como juiz do Tribunal Superior Eleitoral, proferindo, inclusive, voto contrário ao cancelamento do registro do Partido Comunista. Em 14 de abril de 1948, o Supremo Tribunal Federal ainda julgou o RE 12.369, com a relatoria do ministro Laudo de Camargo, interposto contra a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, entendendo pelo não conhecimento do recurso, por unanimidade dos ministros votantes.”
 
Estava consumada a cassação do PCB e dos seus parlamentares no Congresso.

O 3º julgamento que o Supremo tergiversou com a democracia foi quando julgou, recentemente, a ação ajuizada pelo Conselho Federal da OAB em face do STF,  a ADPF 153. Estava em pauta decidir pela constitucionalidade da lei brasileira de anistia, que se aplicou tanto às vitimas do regime ditatorial militar quanto aos seus algozes. O STF produziu uma decisão injusta - ainda que legal – quando anistiou, de forma definitiva, os torturadores. O Brasil é o único país das ditaduras do cone sul dos anos 70 (Argentina, Chile e Uruguai), que deixou impunes seus torturadores. Aqui eles envelhecem e morrem tranquilamente de morte natural. Um escárnio!

Esses exemplos históricos ilustrativos são apenas para dizer, que os comunistas, socialistas e demais democratas, não tem muito o que comemorar com as decisões do Supremo. Os democratas estão reticentes e apreensivos com esse silêncio do STF. Essa omissão, estimulou as ações agressivas aos direitos constitucionais que o juiz Sérgio Moro vem praticando. Ademais, a Corte vive sendo achincalhada pelas atitudes desrespeitosas do Ministro Gilmar Mendes e não as repelem. Pelo contrário, contemporizam com elas. Ouve-se apenas a voz discordante do Ministro Marco Aurélio. Resta perguntar: Ele está clamando no deserto? Quantos Ministros garantistas ainda resta no Supremo? A sua maioria vai deixar estuprar a Constituição? A conferir.

Digo por fim que, se o Supremo nos faltar, endossando as ações de Moro e do Gilmar, está caracterizado o golpe branco travestido de legalidade. Entraremos novamente num Estado de Exceção sem garantias individuais e coletivas. Só nos restará resistir ao golpe nas ruas e, quando for instaurado o novo AI-5, cair na clandestinidade e/ou se auto-exilar em algum país.
Na nossa manifestação contra o golpe e pela democracia, que fizemos na última 6ª feira (18-03), aqui em Rio Branco, reencontramos muitos e velhos companheiros de lutas. O assunto que permeava as nossas conversas era sobre a nossa surpresa e perplexidade de voltarmos as praças para defender a democracia. Pensávamos que já havíamos superado essa fase. Estávamos enganados.

Tenho esperanças, a exemplo do moleiro de Sans Souci em Potsdam, no episódio que relata a disputa do Rei Frederico II da Prússia, que queria se apossar das terras do moleiro para fazer um “puxadinho” no seu castelo e encontra forte resistência por parte deste. Tal disputa expressa o sentimento de justiça que ainda acalenta a nossa luta. Eis o desfecho dessa história: Inconformado, disse o rei ao moleiro: ─ Você bem sabe que, mesmo que não me venda a terra, eu, como rei, poderia tomá-la sem nada lhe pagar. Mas o moleiro retrucou com a célebre frase: O senhor! Tomar-me o moinho? Só se não houvesse juízes em Berlim. E o rei não fez o se “puxadinho”.

Também espero que ainda haja JUÍZES em Brasília!



Marcos Inácio Fernandes é professor aposentado e militante do PT.

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